Self

Outras Ondas – Como os nossos pais (1)

A culpa é da mãe. E do pai. O exercício analítico é tentador nesse aspecto. Basta adentrar no campo das memórias de um indivíduo para que esses personagens não tardem a aparecer, com grande capacidade de influência sobre comportamentos, crenças e fantasias. Há casas com pai demais, há casas com pai de menos. Há mães-Medéias, que devoram a cria em nome do ciúme e da vingança. Noutras, Virgens-Marias se sacrificam diariamente para garantir a felicidade dos filhos – e, quase sempre, expõem no futuro as chagas do sacrifício, sem nenhuma piedade.

De certo, as figuras parentais (ou a ausência delas) são peças imprescindíveis para o desenvolvimento da personalidade de um indivíduo. Podem influenciar positiva ou negativamente, despertando assim o impulso de identificação ou de negação. A mãe nos ensina a capacidade de estabelecermos vínculos e relacionamentos. O pai, por sua vez, fortalece a nossa postura de autossuficiência diante do mundo. Quando desempenham seus papeis de forma equilibrada, nos proporcionam a chave do bom senso: saber manter-se como referencial diante da vida (egocentrismo), sem que percamos a impessoalidade diante de nosso semelhante.

No entanto, pais e mães são resultados de outros pais e outras mães, em sucessão. Infelizmente, para esse ofício não há um manual, nem uma prova de habilidades específicas, que garanta o exercício da atividade de forma segura, minimizando as possibilidades de erro. Na contestadora fase da adolescência, os filhos costumam ter um pensamento que os rege: quando eu tiver meus filhos, farei tudo diferente. Carregam esse lema consigo numa boa, até que ouvem o primeiro choro do bebê. Daí entendem que a insegurança é uma atribuição inerente à paternidade e à maternidade. E ficam em busca da hora certa de repreender, de ser conivente, de admitir as próprias falhas, de vencer o cansaço pelo dever de demonstrar o tal amor incondicional…

Quando estamos dirigindo, é natural que façamos trajetos já conhecidos quando nos vemos em uma situação de vulnerabilidade ou pressão. Não seria diferente quando o assunto é lidar com os filhos. No consultório, já ouvi de muitas mulheres aflitas: “era como se minha mãe estivesse falando pela minha boca”. Confessam isso como se tivessem sido mediunizadas por algum demônio. Busco dar-lhes o conforto da aceitação: você repetiu os dizeres da sua mãe pois, com ela, aprendeu que essa seria a forma mais pertinente para o viver bem. E o que é viver bem? Afastar o sofrimento de si e de quem amamos. E como fazer isso? Infelizmente, isso é impossível de conceituar. Não há fórmulas preconcebidas, é tudo uma questão de tentativas recorrentes, que oscilam entre acerto e erro.

 No entanto, não estimulo uma crença de sina familiar, que se propaga por gerações a fio. Creio na transformação, na melhora, no depuro. Mas sei, e não escondo de ninguém, o quanto isso é difícil de ser praticado. A mudança de um paradigma herdado é algo que nos custa o enfrentamento dessa família. A convicção só desponta com o amadurecimento, e, para chegar lá, o primeiro passo é a aceitação da falibilidade: você será importante, mas não cabe a si toda a responsabilidade pelo sucesso dos seus filhos.

 Para diminuir a cobrança da perfeição, um bom exercício é de voltar a se enxergar como filha(o): ver o que mudou com o tempo na relação parental, quais condenações foram atenuadas, como certas palavras e gestos dos pais interferiram no que você é. Distribua desculpas: ao pai, à mãe, a você. Cada um exerceu aquilo que, por força das circunstâncias ou dos limites da visão, parecia ser o melhor. Ou, no mínimo, o possível para o momento.

(continua)

Outras Ondas: O bem dos outros

Desde pequenininhos, recebemos como uma instrução sumária: pense no outro, cuide do outro, trate o outro como gostaria de ser tratado. Tudo bom, tudo bem. Daí crescemos sob esta crença, sem perceber que “o bem dos outros” pode ser uma das armas mais perigosas que podemos ter nas mãos. Obviamente, não me oponho à ideia de compaixão, de solidariedade e ou empatia. O “bem” a que me refiro é aquele que é praticado acima de qualquer coisa, custando o amor próprio. Nem todo o bem que pensamos fazer pelo outro é necessariamente o melhor para todos.

A novela das nove nos dá um exemplo claro disso. Nina, de Avenida Brasil, está lotada de boas intenções quando resolve vingar Tufão de todos os males que a ele foram reservados. Mas, para desempenhar essa saga heroica, a paga é alta: comprometer a própria felicidade, e a de pessoas que a amam, em nome desse “bem” que deseja fazer. Gera um débito difícil de ser recuperado.

Não é tão diferente na vida real. Diversas pessoas transformam em algo que está fora de si o dínamo da própria felicidade. O marido, o trabalho, os filhos… Tudo merece a atenção, o silêncio resignado, a dedicação extremada. Confundem tudo isso com provas de amor – o que, convenhamos, não é a realidade. Quem já se comprometeu com a educação de outro ser sabe que uma das missões mais dolorosas é permitir que o outro enfrente o erro, sem almofadas psíquicas para protegê-lo do desconforto inerente ao crescimento. Até porque a nossa experiência, a mais sábia mestra, nos ensina que os tropeços nos ensinam a caminhar com mais estabilidade. E que, por mais que escutemos conselhos e determinações dos mais vividos, o que verdadeiramente marca nossa trajetória são as escolhas que fazemos, em seus acertos e erros.

Dessa forma, quando alguém se atravessa no caminho do outro com a missão de impedir-lhe o sofrimento não está sendo nada altruísta. É justamente o contrário: esse pode ser o mais nítido sinal de egoísmo. Afinal, por que uns tem o direito de aprender com os próprios erros, enquanto outros não podem, sequer, ter a chance de errar? A verdadeira ajuda só aparece quando é pedida, suscitada, e não quando é oferecida. Aguardar a demanda do outro é um grande sinal de humildade: quem sou para me julgar alguém mais habilitado que o outro para resolver-lhe seus problemas? Estará ele pronto, disponível e em busca de ajuda?

Nossa bondade não é medida em relação ao que somos com os outros, e sim consigo. O mandamento máximo do cristianismo diz: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus, 22, 39). Contradizemos o ensinamento colocando o “próximo” diante do “ti mesmo”, tendo nele o referencial de bem estar e progressão. Enquanto isso, nossos anseios e necessidades agonizam diante de tantas tarefas – muitas vezes, praticadas em nome de uma reciprocidade que não chega. E nem nunca chegará, ao menos na mesma medida em que se espera. A falta dessa contrapartida nos inspira a crer em uma ingratidão ou desdém, diante de nossa abnegação e desprendimento. Que bem é esse que só fazemos em nome de uma resposta?

Distorcido, o “bem ao próximo” se transforma no nosso maior mal, despertando-nos infinitos venenos: a mesquinharia, a cobrança desnecessária, a rivalidade, a autopiedade, a revanche, o isolamento… Cultivamos tais sentimentos quando ignoramos que o outro será sempre o outro: fora de você, imbuído com o próprio crescimento, com a própria história. Coexistimos, coparticipamos, cooperamos. Mas temos de manter a salvaguarda da independência e do comprometimento com nossa individualidade. Pois somente ela poderá nos propiciar a verdadeira recompensa: saber que cumprimos a nossa missão de servir ao próximo, sem, contudo, termos nos transformado em serviçais. Mantemos assim o grato respeito, por si e pelo outro.

Outras Ondas – Só e em boa companhia


Ia começar a escrever um texto sobre a solidão quando, coincidentemente, me deparo com uma frase atribuída a Frida Kahlo, postada em uma rede social. “Pinto a mim mesma porque sou o assunto que conheço melhor.” Nada mais pertinente ao tema que vou abordar. Pelo personagem, pela justificativa, pela rede social. Virou chavão dizer que vivemos num mundo segregacionista, com pessoas que preferem o isolamento, numa vida tão cheia de tarefas que dificulta a interação. Por outro lado, nunca estivemos tão conectados (ou linkados, para termos uma analogia mais precisa). Afinal, estamos sós, bem ou mal acompanhados?

O isolamento é uma necessidade que se manifesta em diferentes momentos da vida, e com diferentes finalidades. Muitas pessoas usam a solidão para evitar que se revelem. Acreditam que, o desnudar da alma diante de alguém é sinal de vulnerabilidade. O outro pode lhe subtrair as chances da felicidade. Perdem, assim, a possibilidade de entender que a insegurança que ali se manifesta permeia a todos – em maior ou menor grau, em um ou múltiplos campos da vida.

A solidão também pode servir para que pensemos no futuro, ou para que reconheçamos as falhas do passado. Ensimesmados no erro, ou nas expectativas de uma vida ideal, tornamo-nos a nossa pior companhia. Deixamos de tocar na vida real, enquanto dialogamos com vozes e mais vozes que brotam, para nos condenar ou iludir. Nesse “não ata nem desata”, pouco percebemos que o tempo se esvai – e, junto com ele, a chance de efetivar o que verdadeiramente interessa: o sentido da existência.

No extremo oposto está o medo dessas mesmas falas que, de tão incisivas, nos impõem a necessidade de fugir a qualquer custo da solidão. Fugimos da nossa própria companhia, por julgá-la insuficiente ou perigosa. Dissimulamos isso com conversas torpes ou inócuas, que nada acrescentam. Geralmente, não há dificuldade para que encontremos parcerias que simplesmente nos distraiam, sem muito acrescentar, já que muitos sofrem do mesmo problema. A insegurança, os medos e fragilidades são embalados em uma capa de falso otimismo, assepsia e firmeza, somente para enevoar a percepção do outro. Perdemos, assim, a chance de estabelecer um vínculo leal de intimidade e reciprocidade. Ganhamos uma companhia, mas permanecemos sozinhos – e, curiosamente, nos sentimos mais tranquilos assim.

Um novo termo tem sido usado para falar do bem estar que pode ser alcançado quando estamos sós: a solitude. A palavra surge para diferenciar o estado de espírito daquele sentido na solidão – associado a um quê de melancolia, coisa ruim de sentir. A autossuficiência utópica, que por vezes tentamos alcançar, só nos afasta de um dos traços inerentes à condição humana: somos seres tão gregários que, culturalmente, temos por hábito sepultar nossos mortos – dependemos do outro até mesmo quando a vida se encerra.

No silêncio da solidão (ou da solitude, que seja), temos a grande chance de reparar nossas feridas – no duplo sentido da palavra: primeiro, de observação, e segundo, de cuidado e cura. Quando sozinhos conseguimos deixar cessar os ruídos impertinentes, finalmente, ouvimos a voz da alma, aceitamos nossas potências e, com elas, encontramos a solução para problemas até então intransponíveis. Recolher-se é dar chance para que a natureza se manifeste em sua forma mais plena. A exuberância das cores de Frida reflete uma alma forte, intensa e atribulada, que ela aprendeu a conhecer e acatar. Algo que ela só pode reconhecer no isolado movimento da produção artística. E você, com que tintas se pintaria?


Outras Ondas* – A pedra no caminho

A adversidade é o nosso mais valoroso exercício de vida. Quando algo se impõe, em oposição, em nosso caminho, ganhamos a oportunidade de testar nossa resiliência: o valor de quem consegue ultrapassar a dificuldade, sem perecer diante dela. Mas nem sempre nos sentimos prontos para esse confronto. Antes de dar um passo, é necessário ter uma clareza sobre a melhor estratégia a usar, para que a experiência seja edificante.

Ao ter a paz perturbada por um novo fator, não desejável, pode inspirar um quê de negação. Relutamos a entender o porquê de não dar a fluência idealizada aos objetivos. Buscamos um afastamento da dor da frustração, sem entendermos que ela é resultado de uma idealização utópica do propósito – e o ideal está sempre distante da realidade. O ressentimento diante dos fatores causadores da adversidade também pode ser uma fuga perigosa. Projetar culpa sobre fatores que nos levam ao crescimento é, no mínimo, uma atitude imatura e egoísta.

Encarar a dificuldade não é simplesmente querer limá-la do caminho, ou desviar simplesmente. Numa postura de covardia, de quem quer se livrar a qualquer custo do inimigo que se prontifica à batalha, corre-se um grande risco: de encontrar, na próxima esquina, um adversário ainda mais robusto. A postura combativa deve ser uma atitude limpa e decente, onde reconhecemos pontos fortes e fracos em si e nos combatentes. Nisso está a honra do combate. A desqualificação, ou menosprezo, pode apontar para a insegurança. Saibamos entender que temos os adversários que merecemos ter. Nem para mais, nem para menos.

Querer classificar o combate como um mero desentendimento aponta também para uma postura diminuta diante do problema. Nem tudo é viável ao entendimento. E nem tudo se resolve pela simples compreensão. Admitir a falha é penoso, mas não o suficiente para reverter um processo. Muitas vezes, a arma preferida de quem adota essa postura é o convencimento.Querer persuadir a adversidade, como forma de que ela abandone o caminho. Essa postura é prima da indulgência – alternativa ainda mais arriscada, por pode afastar o combatente do páreo, ou por diminuir o valor do propósito final.

O embate soa como a melhor saída. Com ele, questionamos em primeiro lugar o valor do propósito almejado. Quando estamos diante de um objetivo diferenciado, sabemos que qualquer adversidade cessará, pois estamos motivados o suficiente para o enfrentamento. É essa fé que possibilita a busca por alternativas ao sofrimento. Inspira a busca por saídas que possibilitem um caminhar mais livre dos percalços. E é justamente com esse propósito que as adversidades nos chegam: precisamos ter a confiança na entrega e no valor do que se deseja. A dúvida é um caminho natural para que tenhamos certezas. E também para que as velhas certezas dêem lugar a novos paradigmas.

Nossa maior adversidade está em acatar a possibilidade de transformação. Ao duvidarmos da nossa capacidade de ir além do problema, abrimos mão da possibilidade de perceber que já estamos maduros o suficiente para superar as pedras do caminho. Elas têm a capacidade de nos fortalecer no caminho à evolução. Dependemos mais dos problemas do que eles dependem de nós.

Outras Ondas* – Cicatrizes na alma

Viver imprime marcas. Algumas, bastante agradáveis, como os vincos de um sorriso constante. Porém, na medida em que exercemos a humanidade, também sofremos impressões não tão agradáveis. Negações, repressões, cerceamento. Tudo isso provoca em nós a dor de viver num mundo permeado pela civilização. Customizam-se, como traumas, as tatuagens que carregamos na alma.

Jung ensina que todas as doenças, sendo elas físicas ou psíquicas, derivam da limitação imposta pela civilização. Desde o nascimento, aprendemos a conter o indesejável socialmente. Buscamos educar não só os sentidos do corpo físico, mas também os pensamentos e as emoções. Rechaçamos o quê instintivo que nos é natural – forçamos o esquecimento de que somos bichos civilizados, porém bichos. E, ao reprimir a natureza com tamanha ênfase, sofremos com o revés. Os valores contidos não se detêm por muito tempo nos porões da alma. Acabam por explodir em sintomas e, mesmo sem querer, expiamos a nossa bestialidade latente com a dor e o fel das doenças.

Não defendo aqui o primitivismo, nem nego os avanços da dita civilização. Afinal, essa contenção é imprescindível para que vivamos a coletividade, para que respeitemos os limites alheios. Só com ela ganhamos a razão necessária para que vivamos as nossas convicções de uma forma sadia. Entretanto, além de qualquer cultura ou civilização, encontramos na alma um cerne da perfeição original. Ela tentará o tempo inteiro compensar todos os exageros cometidos pela consciência. Assim sendo, quanto mais negarmos os elementos sombrios que nos compõem, numa tentativa vã de destacar somente a “beleza” e a “sabedoria” da consciência, mais estamos próximos de levar a rasteira que nos fará conhecer os manguezais da psique.

Por esse motivo, evadir-se do problema soa como uma atitude imbecil. Não dá para ter medo daquilo que nos constitui – por mais que esses valores inspirem vergonha, nojo ou raiva. Um dos melhores pontos de partida para esse trabalho é pensar: “Fui exatamente o que consegui ser naquela circunstância, quando ainda tinha uma visão limitada sobre mim, sobre os demais indivíduos e sobre o mundo que me cerca”. Não é simplesmente justificar que as coisas são como são, mas é desculpar a si próprio e às circunstâncias que inspiraram a atitude menos acertada. Devemos ser responsáveis por nossa sina.

Obviamente, podemos enxergar algumas cicatrizes que carregamos como resultado da ação de outras pessoas. É preciso ir além do ressentimento e buscar compreender que cada um é exatamente aquilo que tem condições de ser. A culpa não é minha, nem sua, nem de ninguém.

Certos ferimentos, quando não tratados com a atenção necessária, podem gerar sequelas. Num primeiro momento, descaracterizam a imagem que se carregava anteriormente. Podem até mesmo despertar a aversão diante dos demais. Um ferido precisa se reconhecer nesse novo papel – não para assumir uma vitimização, mas para buscar elementos que promovam a cura. Minhas feridas fazem parte do que eu sou neste momento, e cabe a mim buscar alternativas para que elas sarem com mais facilidade e com a menor limitação posterior. O tempo pode até curar tudo, mas a negligência fazer com que o ferimento cicatrize com distorções, impedindo os movimentos.

Após sofrer um baque, todo indivíduo precisa ter uma avaliação honesta de si mesmo. Em primeiro lugar, para saber se precisará de algum tipo de reabilitação para conseguir enfrentar as consequências do que foi vivido. Toda ferida gera uma cicatriz e é necessário saber reconhecer-se com cada nova marca. Intervir pela cura, em nome da felicidade, é uma obrigação de quem sofre.

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