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Psique: Evitar notícias ruins não nos leva a um mundo melhor

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Foi num grupo de Whatsapp que uma amiga pediu licença para desabafar. Estava estupefata com reportagens de prisão de um grupo envolvido com pedofilia. Narrativas falam da troca de imagens de bebês sendo abusados. Sensível e mãe de um garotinho, foi recomendada por outros integrantes do grupo a evitar tais notícias.

E esse acaba por ser a medida mais adotada quando nos deparamos diante daquilo que renega os valores básicos da humanidade. Olhar para o lado, fechar os olhos. Mas, no íntimo, algo nos chama a entreabrir os olhos e observar a situação, para algo além da curiosidade tétrica.

Quando lidamos com a existência desta e de outras formas de violência, igualmente abomináveis, entendemos por que o ser humano precisa de limites. Regimentos, leis, mandamentos e dogmas são instrumentos que criamos para que nos defendamos de nós mesmos.

“O que sai do coração do homem é o que o torna impuro”, como assinala o Cristo, leva-nos a pensar que também somos habitados por aquilo que nos assombra.

Nossa natureza compõe o belo e o feio, o bom e o mau, a luz e a treva. Identificamo-nos mais com o pólo positivo, o que é natural. Mas é justamente da negação do negativo que nos habita que emergem as atrocidades que compõem o noticiário.

A sensação de ressaca que vem quando se entra em contato com tais conteúdos deriva justamente disso. Nossa energia é drenada para os porões do inconsciente, do desconhecido em nós, despertando esse estado melancólico, desvitalizado. Quanto mais sensíveis e impressionáveis, mais afetados ficamos.

Assim, conhecer o lado mais sombrio da existência é imprescindível para que aprendamos estratégias de defesa. Nisso, não concordo com a recomendação de evitar tais conteúdo. Uma coisa é alimentar-se deles (o que é nocivo), outra é ignorá-los.

Não é à toa que o mal esteja associado a uma erva daninha. Ele nasce na fantasia e potencializa-se enquanto não é encarado como uma parte de nós. Ganha dimensões desproporcionais, inimagináveis. Tanta força que, quando tiver uma oportunidade, será convertido em experiência concreta: encontraremos o mal que tanto tememos.

Esta é a razão de explorarmos certas fantasias em análise: num ambiente seguro, o nosso lado perverso precisa ser identificado, reconhecido, nomeado, debatido. Assim, poderá ser compreendido e esvaziado.

Por esse motivo, somos tão curiosos às problemáticas humanas, seja no noticiário ou na ficção. A violência, a dor, a segregação… Quando observadas a certa distância, temos a chance de experimentar os afetos por elas despertados “em doses homeopáticas”, ou seja, capazes de atenuar do impacto original de uma vivência.

Enquanto denunciam o que há de pior em nós, também despertam o mais nobre dos sentimentos: a empatia. Acessamos as nossas referências de sofrimento para compreender como o dano atravessa o outro. E assim aprendemos a aceitar e lidar com as bestas que carregamos em nosso íntimo.

Psique: É fácil querer ser interessante. Difícil é se fazer interessante

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Queixar-se da solidão é algo curioso. O mundo, cheio como está, com uma infinitude de possibilidades de comunicação, ainda tem esse argumento como causa da infelicidade de tanta gente. Ironias à parte, talvez a falta de companhia encubra questões mais profundas.

O problema é: muitas pessoas carregam junto a esta lamentação uma série de adjetivos (quase sempre pejorativos) em relação ao outro. Reclamam tanto, e de tudo, que chegam a contradizer os próprios argumentos de desqualificação que utilizam para o descarte.

A conclusão: “ninguém é bom o suficiente”, “não compensa apostar”, “sei como é esse tipo de gente”. Uma série de respostas prontas, sempre bem na posição de defesa, para dizer que o problema não está em si. E quase sempre está. Ou estariam todos aquém do aceitável?

Muitas vezes, defender-se não é uma atitude soberba, como pode parecer. É justamente o contrário: apenas uma forma de minimizar o desconforto de sentir-se invisível. De não se perceber minimamente interessante para despertar a atenção do outro.

Uma pessoa se torna interessante por sua história. Por onde caminha, as escolhas que faz, o que viveu, em que empreende, o que realiza, o que perde, com quem se relaciona. Tudo isso propiciará um repertório de vivências.

Também conta a forma como se interpreta tais acontecimentos. Por exemplo: as marcas da dor fazem despontar numa pessoa a amargura e a melancolia; em outra, podem virar resiliência e determinação. A primeira será pouco desejável, enquanto a segunda pode ser altamente atrativa.

Não há como sermos interessantes sem estarmos disponíveis para viver. Da forma mais plural possível. Arriscar, experimentar, desacostumar, buscar a autenticidade. Tudo isso molda pessoas únicas, que despertam a curiosidade do outro.

É necessário valorar tanto o acerto quanto o erro. Em seus altos e baixos, a vida permitirá que aflorem em nós aquilo que somos: personalidade, características, temperamento. Cada blend que se forma é único, autêntico. E será interessante. Não a todos, mas a quem de fato interessa.

Muitos solitários, no entanto, buscam nas relações uma oportunidade para despertar tudo isso. Enxergam no outro uma espécie de paleta para colorir uma existência pálida, para preencher vazios. Um grande erro.

Não que uma relação não fará aflorar novos atributos, mas isso se dará de forma orgânica. Inclusive, Jung nos ensina que o relacionamento é a via régia do autoconhecimento, justo por fazer evidenciar o desconhecido que nos habita.

O lugar da princesa, adormecida à espera de um príncipe que a desperte, é uma boa imagem para falar dessas expectativas. Nessa história, a vida não se apresenta no sono dela, e, sim, no caminho dele. O cavaleiro se torna interessante ao assumir uma missão, ao enfrentar desafios com coragem, ao confiar no triunfo.

Ou seja: é a postura ativa, a forma como participamos de qualquer situação, que nos torna mais ou menos interessantes. Viver é diferente de existir, e quem entende isso consegue a atenção (e o respeito) do outro. Não há como atrair olhares se não tivermos o que mostrar.

Psique: O ego é uma figura imprescindível para a manutenção da saúde psíquica

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Na semana passada, citei num texto sobre o vazio algumas características do ego. Entre elas, a pressa, o olhar limitado e a necessidade de controle. Pareceu que eu queria criticá-lo, como ressaltaram alguns colegas analistas. Não foi a intenção.

Quem me conhece, sabe que não apoio o discurso antiego. Ele é fundamental para que tudo não desmorone, para que a individualidade possa se realizar com a influência e não sob o domínio dos conteúdos coletivos. Defendo o ego de forma respeitosa.

O ego é aquele que interpreta a realidade, e a define como tal. Ou seja: é quem identifica, nomeia e processa aquilo que vivenciamos, sentimos, pensamos e fantasiamos. É uma figura imprescindível para a manutenção da saúde psíquica.

Sem ele, seríamos difusos, inconsistentes – pois assim são os incontáveis personagens que nos habitam. Não se vê nessa pluralidade toda? Então, avalie com sinceridade: você age da mesma forma diante de sua mãe, no trabalho, na religião e nas relações conjugais?

Cada contexto chama um personagem, e todos cabem dentro de si. Cada um com suas particularidades: interesses, crenças, emoções e sistemas. Cada personagem é coerente em si, mas não necessariamente com os demais. São como personalidades que nos habitam. Algumas convivem bem com as demais, outras, não.

Por este motivo, costumo dizer que ele é o zelador do prédio, o gerente do RH. É ele quem tenta administrar uma pluralidade incontável de personagens que constituem o sujeito. Encontrar o espaço certo e a forma mais adequada para harmonizar essa convivência. Nunca é fácil, pois os interesses costumam ser divergentes.

O ego é quem mais sofre nessa história toda, pois é puxado a atender uma série de demandas e interesses. Na análise, ele é o meu interlocutor e também a voz dos demais personagens. Ora para defendê-los, ora para acusar os danos por eles gerados.

Meu ofício parte dessa escuta. De compreender com quem o ego está irmanado, e de avaliar como está a capacidade dele de lidar com as asperezas da realidade. Ele é a voz do sofrimento, é quem reclama do mundo que não se comporta de acordo com os ditames do que julga correto.

Quantas e quantas vezes, ele chega aqui fraquinho, indefeso, incipiente. Ainda indiferenciado das questões familiares; achando que é seu aquilo que, de fato, é uma reprodução de imagens herdadas pela mãe e pelo pai. Sem capacidade ainda para realizar sua verdadeira missão.

O ego é aquele que se encarregará da realização da alma, é o seu veículo. Quando está devidamente fortalecido, fará com que o indivíduo explore suas potências da melhor forma, e, assim, possa marcar sua presença no mundo.

Propiciar o desenvolvimento do ego não é inflacioná-lo, cedendo lugar à ignorância, à soberba, à mesquinharia. É fazê-lo compreender da tal missão e curvado a atender tais propósitos, maiores que sua vontade e prazer. Ele é o cavalo que, para executar bem o trajeto, precisa estar submisso e confiante no cavaleiro que o conduz.

Para que se atente a isso, muitas vezes ele precisará ser contrariado. E será. Seja no processo analítico, de forma simbólica, seja nos acontecimentos e eventos concretos. A vida corrigirá os cursos dos egos arredios, mesmo que isso seja marcado pela dor e pelo sofrimento. O maior deles, certamente, será o de perceber-se limitado. Humano, simplesmente.

Psique: No fundo do poço, há água limpa. Mas é preciso coragem para lançar-se

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Ao vazio atribui-se tudo de pior. A dor, o sofrimento, o descontentamento, o medo, a incompletude. Ele é o grande inimigo do ego: o zelador metido a dono do prédio, que quer tudo na mais perfeita ordem. Sem perceber, no entanto, que ele mesmo não é capaz de vislumbrar a perfeição.

Daí tenta-se preencher o vazio com palavras, objetos, relações. É inútil. Ele persiste lá, e persistirá. É assim que deve ser para que seja preservado o sentido da existência – e não só os caprichos e confortos egoicos.

Tudo brota do vazio. A semente carrega em si uma câmara oca. O útero é um vazio. O silêncio é um vazio. Nele, então, temos o princípio da criação das coisas, dos seres, das ideias.

A alma precisa desse espaço ocioso para se manifestar. Longe dos preconceitos e dos determinismos que limitam a realidade ao cristalizá-la. Se estamos totalmente preenchidos por algo, não há espaço para a inovação. Ficamos estagnados.

No entanto, isso nos parece mais seguro. São as âncoras usadas para manter o ideal de controle do ego. Nossas certezas preenchem nosso campo de visão. As prateleiras vazias evocam possibilidades que ainda não consegui vislumbrar – e isso é confundido com fracasso.

A natureza é tão sábia que se encarrega de desocupar espaços. Desgasta, corrói, esfacela. O tempo, agente compulsório da transformação, assume o papel de fomentar o vazio. Ele é o irmão mais velho da morte. E ela é a mãe das possibilidades.

Quando recebo alguém se queixando de um vazio, sentindo-se o pior dos seres justamente por isso, escuto o eco de uma alma que quer se realizar. O difícil nesses momentos é convencer o “eu” a confiar e retirar-se dessa função dominante, sob a promessa de que algo melhor surgirá.

A metáfora do “fundo do poço” é uma ótima imagem para ilustrar essa situação. Muitas vezes, achamos que chegamos ao fim. Mas, de fato, ainda tentamos nos agarrar nas paredes cobertas de lodo por temermos o vazio. Ignoramos, assim, que é no fundo que se encontra a água limpa, sede da vida.

Superar o desespero diante do vazio é perceber nele uma oportunidade, entender que ali está guardada toda a potência. Como nos ensinam os versos de Lao Tsé, escritos no Tao te Ching, 600 anos antes de Cristo:

“Trinta raios convergem para o centro da roda 
Mas é o vazio do meio 
Que faz andar a carroça.

Dá-se forma à argila para fazer vasos, 
Mas é do vazio interior 
Que depende seu uso.

Uma casa é furada com portas e janelas, 
É ainda o vazio 
Que permite a habitação.

O Ser dá possibilidades 
É através do não-ser que nós as utilizamos.”

Psique: Nossa história é definida pelos passos tomados no caminho da vida

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Nenhum palácio chega à ruína de uma hora para outra. Assim como nenhuma relação, carreira ou instituição. A natureza não dá saltos, e nossa vida também não. São os passos que definem o caminho assumido durante a história.

No meu trabalho, lido basicamente com queixas. Daquilo que poderia ter sido, e não foi. Do outro como embargo à felicidade. Das obrigações que forçam a ser quem não se quer. Parte de quem chega a um consultório de psicoterapia vem em busca de aliados, e não de transformação.

Grande parte dessas queixas são antigas, já ganharam lugar cativo no colo de quem as traz. Resistem ao tempo, acreditando que ele (o tempo) trará soluções. Não percebem que uma ferrugem no casco de um barco nunca irá transformá-lo num navio.

A postergação dos nossos males não é a estratégia do preguiçoso, exclusivamente. Muitos dos que adiam decisões não o fazem somente por uma passividade frente os acontecimentos. Mas por descrença, insegurança. Acham que o esforço é válido, mas não suficiente para reverter situações.

Assumem, então, o lugar dos esperançosos: aqueles que creem mais nos acontecimentos que nas realizações. E, aos poucos, recebem por baixo da porta a fatura da negligência diante da vida. E é justamente ele, o tempo, quem aparece com as cobranças.

Daí pensam: é tarde demais, as condições não são mais favoráveis. A coragem para recomeçar, a disponibilidade para aprender, os créditos para estabelecer novos vínculos, o colágeno da pele… Tudo parece ter diminuído, deixando escassas também as chances de novos empreendimentos bem-sucedidos.

Assim, sucumbem até o fim dos dias – quando a fisiologia do corpo ou a decisão do outro será capaz de resolver por si. Arrependem-se muito da primeira fumaça, do primeiro indício, da sinalização inicial. As coisas não estavam indo bem e algo precisava ser feito. “E eu não fiz”. Culpar-se não é a saída.

Você conhece a teoria da vidraça quebrada? Ela foi desenvolvida por dois pesquisadores americanos, J. Wilson e G. Kelling, e fala basicamente que desordem gera desordem.

Se deixarmos uma casa fechada, porém intacta, ela assim se manterá por bastante tempo. Quando a primeira vidraça for quebrada, o vandalismo rapidamente se instalará e, logo, a casa estará destruída.

Podemos pensar metaforicamente na teoria e na administração dos nossos problemas. É necessário repor as vidraças logo que se quebrem, para que a energia de abandono não se instale. Caso ocorra, a reparação dos danos será mais dispendiosa e desgastante.

Encarregar-se daquilo que nos inspira mal-estar é cuidar da vida. Cuidado é a palavra mais apropriada para designar a coragem para resolver um problema, encerrar uma fase – e dar início a outra. Só quem cuida de si é capaz de perceber a graça no trajeto, o significado de existir.

nivas gallo