Self

Psique: Preocupe-se menos em ser admirado e mais com ser bem resolvido

crédito: Metrópoles/iStock

“Não há melhor resposta que o espetáculo da vida”. Sou um enfático defensor dessa frase de João Cabral de Melo Neto. Sim, é ela – a vida – quem nos golpeia nas esquinas escuras. Mas é nela que também encontramos o triunfo, a recompensa pela dedicação que temos.

Não contesto aqui quem acredita no reino dos céus, na felicidade além-túmulo. Feliz de quem pensa nessa continuidade. Até porque quem tem isso como parâmetro também costuma manter vigilância aos atos maléficos que comete (e que podem comprometer essa espécie de plano de carreira).

Para mim, são vários os ingredientes que compõem o bem-estar. O mar, um amor, amigos, uma música alegre, fé, a palavra certa, arte, acarajé… Nem todo dia dá para ter essas coisas. E isso é bom: até para que eu possa valorizá-las, como deve ser.

Ruim mesmo é lidar com a injustiça, em qualquer sentido, com o desamor, com a insegurança, com a miséria. Isso mina a saúde de qualquer ser e, invariavelmente, irá nos atingir em maior ou menor grau.

E, quando atinge, abala primeiro a confiança. Principalmente quando assimilamos o outro como origem para nosso desconforto. Daí brotam vínculos venenosos. Começamos a creditar ao outro o nosso mal, o nosso desequilíbrio. E assim ficamos ainda mais contaminados.

Nesse processo, nossa energia vital se dispersa: uma parte segue para cumprir nossos objetivos, a outra se destina a nutrir ressentimentos, ímpetos de vingança, vultos de perseguição. Um desperdício, por não corrigir os danos que foram causados. Mais que isso: uma estratégia de defesa autodestrutiva, degenera mais que serve.

Muitos encontram em tais argumentos uma trincheira, uma justificativa para insucessos e incapacidades. Erram, por destinar os recursos que têm para combater o inimigo errado. Em vez de batalhar pelo próprio desenvolvimento, abrem novos drenos, por onde escoam oportunidades.

Com elas, temos a chance de mostrar quem verdadeiramente somos. Quando conhecemos nossas potências, não sucumbimos por pouco. Aportamos nossa capacidade naquilo que temos, e não no que nos falta. E assim reconstruímos realidades até melhores do que as que foram subtraídas.

Essa reconstrução é um exercício grato, por nos ensinar sobre a resiliência. Envergamos, sem quebrar – e isso nos faz mais fortes, menos frágeis do que o pensamento inicial nos fazia acreditar.
Viver bem deixa de ser um exercício para contemplar a expectativa alheia, ou até mesmo para mostrar ao outro o quão capazes somos. Preocupamo-nos menos em sermos admiráveis, exuberantes, invejáveis. E dedicamos nossa atenção a sermos bem resolvidos. Passamos, assim, a desfrutar daquilo que a alma nos presenteia, simplesmente por merecermos.

Psique: Existe limite para o perdão?

crédito: Metrópoles/iStock

Quantas chances uma pessoa merece? Quando um erro pode ser compreendido, quando é inadmissível? Ceder é uma atitude louvável ou uma idiotice? Limites frágeis definem valores tão subjetivos.

Nós, terapeutas, somos muitas vezes acusados de complacência. Defendemos os errados, sob o argumento da inconsciência de seus atos. Já ouvi comentários até que soam como insultos: “é fácil falar, queria ver se fosse contigo” – o mais comum.

Até certo ponto, é verdade. Não somos (ou deveríamos ser, ao menos) tão inimigos assim do erro. Mas a defesa que fazemos não é por sermos bons ou tolos. E, sim, por compreendermos que qualquer ato está ligado a uma complexa rede de acontecimentos. E que, por trás de cada gesto, há uma mensagem que tenta ser transmitida. Mesmo que da forma mais torpe.

Assim como ninguém nasce para ser um fracasso, não há nenhuma atitude planejada para dar errado. O sucesso, no entanto, derivará de uma série de fatores. Muitos deles serão incontroláveis, até ao sujeito mais minucioso.

Quando o outro comete uma falha, ele nos frustra duplamente. Não só por interromper nossos planos, mas principalmente por nos lembrar que lidamos intimamente com a possibilidade do erro. Isso justifica a dificuldade dos perfeccionistas em abonar o erro do outro.

Ao darmos outra chance a quem erra, fazemos mais que uma simples aposta no acerto. É um voto de confiança, uma forma de mostrar solidariedade à condição falível que nos atravessa a todos. É também uma atitude amorosa: capacitar o outro a refletir sobre o ocorrido, para que possa revisar atitudes e corrigir posturas.

Há um limite razoável para isso? Obviamente. Não se trata de um chamado a cegar-se diante das falhas. É necessário discernir entre uma incapacidade legítima e uma intenção maligna, pois, é fato, existem aqueles que estão impregnados por mal maior que a minha capacidade de detê-lo.

A estes, também cabe alguma misericórdia, novas chances para que possam interagir com o mundo de forma menos nociva. Mas, pergunte-se: serei eu a pessoa mais indicada e capacitada para auxilia-lo, ou é o momento de me preservar?

Uma coisa é certa: a outra chance, seja ela para quem ou o que for, só é válida quando é uma decisão madura, genuína. E não quando aparece como uma espécie de crédito para validar meus futuros erros. Muitos negociam indulgências com esses trunfos, e impedem que as relações em questão sejam maduras, honestas e profundas.

Mas estou certo de que esgotamos as possibilidades bem antes do nosso verdadeiro limite. Desistimos fácil do outro, não só por não crermos na sua capacidade de melhorar. Mas por saber que, para que o erro do outro seja superado, exige-se também uma reforma naquilo que somos. A vida não é somente uma disputa por razão.

Psique: Se achar não significa ser. Mas, para muita gente, já é o suficiente

crédito: Metrópoles/iStock

“Pensa que é dona e eu lhe pergunto: quem te deu tanto axé?” O verso, citado por Caetano Veloso, corresponde a um questionamento muito presente no linguajar do soteropolitano. Remete ao candomblé, religião de hierarquia forte, na qual qualquer conquista deriva da transmissão de um mais velho para um mais novo.

Tal frase me vem à cabeça em diversos momentos. Para mim, ela é a melhor para descrever a tal da síndrome do pequeno poder. Diante dele, só mesmo atuando com a ironia debochada do linguajar baiano (afinal, só o humor nos salva de coisas tão mesquinhas).

Se achar não significa ser. Mas isso já é o suficiente para muita gente. Contentam-se em atuar de forma soberba em pequenos territórios, como se deles fossem.

Defendem cargos, postos e vínculos – mas não com o olhar de quem cuida, e, sim, de quem domina. Confundem-se com pequenas conquistas, perdem grandes oportunidades.

Tornam-se insuportáveis, evitáveis. Essa arrogância apaga qualquer carisma. Transformam-se naquela pessoa que é bonita, mas antipática. Rica, mas ostentadora. Sabida, mas chata. Poderosa, mas imprestável.

Cercando os soberbos, somente dois tipos de pessoas: os subalternos, que o admiram, e os oportunistas, que o invejam. Se são boas companhias? Fora delas, a solidão.

Em seu interior, percebem-se completamente desconectados desse “sucesso alcançado”. Nunca se satisfazem, vivem um vazio profundo. As glórias que buscam tentam, quase sempre, encobrir feridas profundas. É o analgésico que encontram para encobrir a dor que delas deriva.

A tristeza de ser assim geralmente bate quando se deparam com a transitoriedade das coisas. Sim, nada é para sempre. Nascemos em um mundo que já está pronto, e que carrega modelos. Ocupamo-nos de alguns deles. Quando vier a morte, um novo alguém assumirá tal função. Talvez melhor que nós mesmos.

Pensar assim não é subestimar a importância de cada um. Seria incoerente, uma vez que meu trabalho é, basicamente, fazer realçar a individualidade daqueles que me procuram. Em geral, a soberba não cabe naqueles que trazem consigo o compromisso do desenvolvimento.

Estes sabem que ser bem-sucedido não é só ter privilégios, mas principalmente responder a encargos mais sérios. Aprimorar-se naquilo que se destacam é uma meta repleta de significado, é realizar a própria vida. Querem ser lembrados pelo que foram capazes de transformar na terra, no outro. E não só por sua ambiciosa busca por alguma hegemonia.

Somos diferentes, apenas. Mas não superiores. A quem escala para se ver acima dos demais, um conselho: melhore. Se é para eternizar-se nas memórias do mundo, que seja de uma forma positiva, pelo que fez. E não por sua pretensão.

Psique: Pessoas verdadeiramente espiritualizadas não cultivam a hipocrisia

crédito: Metrópoles/iStock

Como analista junguiano, uma das principais demandas que escuto de meus clientes diz respeito à espiritualidade. Em diversas versões: incompreensão do conceito, vontade de desenvolver esse atributo, a confusão gerada pelos dogmas religiosos.

Como que instintivamente, acreditam que uma melhor elaboração do tema poderia conferir-lhes mais bem-estar. E estão plenos de razão. Encontrar-se espiritualmente é a finalidade para cada indivíduo, uma espécie de meta na existência. E isso não está necessariamente associado à religião.

Entendo uma pessoa espiritualizada como aquela que encontrou e aprimorou os valores e talentos que lhe fazem única. E que, fielmente entregue a isto, passou a empregar tais características a serviço do outro, em nome de um bem comum.

Em suma: espiritualidade é serviço. E, seguindo esse conceito, todos podem ser altamente espiritualizados exatamente com aquilo que são, com as facilidades que têm. Não há porque pensarmos que um dito “líder espiritual” é mais elevado que um chaveiro, por exemplo. Tudo dependerá daquilo que é entregue – seja um conselho, ou uma cópia de chave.

Inclusive, pensar assim mudou profundamente a forma como interpreto as religiões. Ainda as compreendo como um bom caminho para desenvolver a espiritualidade – uma vez que nos chamam à reflexão do lugar que ocupamos no mundo. Mas tenho buscado me libertar dos discursos, e focar nas atitudes.

Muitos que se proclamam espiritualizados são, em seu íntimo, clientes de Deus. Ou dele apropriam-se indevidamente. Buscam, pedem, reclamam, barganham. Mas pouco estão dispostos a verdadeiramente servir ao semelhante – seja com uma palavra, um silêncio, um gesto. Agem como acumuladores de milhas, e não como quem quer atender ao chamado de quem necessita.

Um ser espiritual reproduz o caráter transcendente do que entendemos por Deus: vai além do óbvio, compreende, excede à normalidade. Faz a diferença, positivamente. É capaz de transformar uma vida, de abrir frestas que ajudam a iluminar e arejar o sofrimento, a carência e a incerteza do outro.

E, para isso, não precisam de esforço, de ser quem não são. Espiritualizar-se não é criar uma personagem, é saber despir-se das que a vida já obriga a carregar. É um encontro de dois dispostos, seja lá qual for a circunstância.

Palavras não conduzem o espírito. O sentido que damos a elas, sim. O simples fazer não me aproxima do sublime, mas a intenção do feito pode ser transformador e reverberante. Pessoas verdadeiramente espiritualizadas não cultivam a hipocrisia. Contribuem somente com aquilo que têm a oferecer, sem deixar se levar por intenções abjetas.

A espiritualidade é uma busca grata por nos oferecer a noção de sentido: existo com um propósito, sou capaz de melhorar meu mundo único e exclusivamente por ser quem sou. Assim, o caminho que nos leva a esse estado nada mais é que o mesmo que nos leva para dentro.

Psique: Crise política: amor e poder não podem coexistir num mesmo ambiente

crédito: Michael Melo/Metrópoles

Jung nos ensina que o amor e o poder não podem coexistir num mesmo ambiente. Sempre que as diferenças são ressaltadas numa espécie de qualificação, fica complicado ter uma atitude de aceitação, compreensão, inclusão, respeito. Seja por si, seja pelo outro.

Na clínica, vemos essa premissa ser aplicada nos mais diversos campos da existência humana: relações profissionais, conjugais, familiares, religiosas. O poder quase sempre é a base para o sofrimento, justamente por não dispor, ao outro, a capacidade de observar as diferenças de seu semelhante sem, com isso, ter de impor sobre ele uma cobrança, uma medição.

O momento político que atravessamos é um reflexo explícito disso. O poder chamou para perto, cada vez mais perto, o desamor. Chamou também a incapacidade de pertencimento, de unificação, de um propósito comum.

O vigente, ao que parece, é ganhar mais, para quem tem acesso aos dividendos e quer detê-los para se tornar ainda mais poderoso. Ou ter razão, para quem acompanha de longe e, iludido, sente-se no dever de defender algum possível injustiçado.

Independentemente do papel que se seja capaz de assumir, o que mais fica evidente é a incapacidade de empatia – a porta do amor. Especialmente com quem não tem condição de defender os próprios direitos, por ter a voz negada.

Não se fala mais nas intoxicações provocadas em Mariana, nem nas calamidades da seca no semiárido. Tampouco no travesti assassinado e ridicularizado no vídeo do WhatsApp. Nem no jovem negro, condenado como traficante a 11 anos de prisão por portar um frasco de desinfetante. Nem na criança morta pela falta de assistência médica.

E por que não? Esses nunca foram eleitos ao amor. Esses nunca preocuparam a sociedade – somente quando, de alguma forma, representam uma ameaça ao poder já alcançado. Amamos somente quem enxergamos, e esses só são vistos quando há alguma conveniência.

Estamos indignados com a falência dos nossos poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – por ainda acreditarmos que neles estaria a solução para nossas mazelas. De fato, nossa descrença maior está na capacidade transformadora do amor. Talvez por ainda associarmos a este afeto um tom meloso, em tons pastéis, um tanto passivo.

Amar o Brasil é mais que defender um partido político, uma ideologia, uma religião. Ou, até mesmo, o nosso território conquistado – seja ele um quadradinho ou um grande feudo. Para exercer esse amor, temos de estar dispostos a abraçar o sujo, o empoeirado, o enlameado, o desdentado.

Esses representam uma das grandes sombras que queremos evitar. Falam da rejeição, da falência, do insucesso, da senzala, do incapacitado, do doente, do imperfeito. Queremos consertá-los, num higienismo hipócrita de quem melhora a realidade usando a denegação: “Se eu fechar os olhos, o problema deixa de existir”.

E assim vemos cracolândias dispersadas, crimes indulgenciados por delação e o argumento de comparação do mal maior com o mal menor. No lugar disso, deveríamos simplesmente ouvir o velho Jung: “O melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é parar de projetar nossas sombras nos outros”.

nivas gallo