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Psique: O oposto à guerra não é exatamente a paz, e, sim, a conciliação

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A guerra é um valor humano. Inevitável, apesar de indesejável. Ela se manifesta quando se percebe a ameaça de ordem preestabelecida por algum fator invasor. Fazem-se guerras por tudo que é tido como valoroso: um território, uma relação, um ideal, um posto. Resume-se assim na necessidade de manutenção ou ampliação do poder.

A maior arma de qualquer combate é a carga afetiva que ela é capaz de mobilizar. O envolvimento nem sempre é com a causa, e, sim, com quem impunha a bandeira. Confiança e cumplicidade podem valer mais do que certas armas. Há muita dor envolvida, muito risco. Se a causa não for cativante, não valerá a pena a batalha.

Nas mitologias, as guerras são personificadas por deuses viris, obstinados. Ares, Marte e Ogum, como exemplos, representam o mesmo arquétipo. Trazem consigo o poder da conquista e da inovação, o caráter impulsivo e indomável.

Mas são teimosos, precipitados, desmedidos, inconsequentes. Têm dificuldade de compreender diferenças. Pecam pelo excesso de confiança. A assertividade se transforma em intransigência. Como qualquer grande confronto, são capazes de promover o sofrimento coletivo em nome de um ideal.

Jung alertava para os momentos mais belicosos. Segundo ele, a nossa consciência se rebaixa e a energia da destruição pode tomar proporções impensadas. Todo nosso potencial bestial encontra liberdade quando estamos diante de um inimigo. Especialmente se tivermos companheiros ao lado. A coletividade nos afasta do discernimento.

E aí vem a injustiça da guerra. Todas as atrocidades, a punição de inocentes. O espírito da guerra foi cegado pela ira. E assim agirá além da medida certa das coisas. Não poupará nem o bem mais sublime: a vida.

Na antiguidade, guerrear era visto como uma arte. Seu desfecho, um espetáculo. Ainda o é, apesar de fazermos de uma forma mais velada. Ficamos gratos com os semelhantes vitoriosos, satisfeitos com a derrota do opositor. Ele representa o exorcismo de conteúdos sombrios, renegados em nós.

O oposto complementar à guerra não é exatamente a paz, e, sim, a conciliação. Nela, não assumimos o caráter exclusivo às diferenças. Buscamos compreendê-las, mesmo aquelas com as quais não nos identificamos.

A tensão que paira sobre o mundo afetará uma série de pessoas, gerando danos irreparáveis para todos os envolvidos. Aos demais, em vez de uma atitude distanciada, cabe uma reflexão: compreender como cultuamos, em nossos altares particulares, a discórdia, a intolerância e a competição.

Nossos gestos não têm o potencial de destruição em massa das ogivas nucleares. Mas são capazes de minar, em nosso semelhante, a capacidade de ele ser o que simplesmente é.

Psique: Paramos de escutar nossos sentimentos para dar ouvidos ao dos outros

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Uma hora, a cobrança chega. Já ouvi isso em diversos contextos. E também já repeti essa frase para algumas pessoas, em situações bem especiais. Quando escutei, ou quando escutaram, o rosto revelou uma mistura incômoda: descontentamento com constrangimento, uma revolta abafada.

É como se descobríssemos, num determinado momento, que não somos tão donos da nossa própria história, como imaginávamos. É justamente o contrário: a história nos tem como instrumento, ela precisa de nós para poder se realizar.

Não falo aqui das sinas tristes às quais nos sentimos atados. Faço referência aos talentos que aguardaram em latência, mas pedem para ser desenvolvidos. Dos compromissos que temos com nosso mundo, aquilo que somente a nós compete – ou que, ao menos, parecemos ser as pessoas mais indicadas a assumi-los.

Grande parte das queixas humanas deriva da falta de uma missão, de algo que confira um significado genuíno à existência. Na psicologia junguiana, entendemos que esta é a grande meta do ser humano: realizar-se como indivíduo, encontrar na própria essência aquilo que lhe confere o cerne, o motivo de estar aqui.

Para os antigos, isso era bem mais fácil. Não só por serem mais resignados aos desígnios que lhes eram impostos, ou por mera conveniência. O que os fazia encontrar logo cedo este sentido existencial era a convicção, a crença, a confiança.

A verdade era mais clara e acessível, e ela bastava por si. Não duvidávamos tanto daquilo que sentíamos, ou do que nos era transmitido pelos mais velhos. Não pensávamos que isso seria uma atitude ingênua, não nos preocupávamos tanto em estarmos sendo enganados.

E, assim, estávamos protegidos do pior que nos habita: a insegurança. Tínhamos a medida certa do medo, e sabíamos reverenciá-los em sua importância. Sabíamos esperar o momento certo das coisas, sem a sensação de tempo perdido. Acreditávamos na confluência dos fatores, numa regência maior capaz de arranjar o improvável.

Substituímos tudo isso pela vontade de controle e determinação, tornando-nos deuses de nós mesmos. As perguntas, no entanto, não cessaram. Só que nossos ouvidos ficaram moucos para as respostas da alma.

Quando a vida se recusa a participar desse jogo, ficamos perplexos. Chega a cobrança para que nos encarreguemos da nossa missão, tal qual ela é, e isso soa incompreensível. No íntimo, sabemos de toda a pertinência do chamado – só não queremos acreditar.

Relutamos, ingenuamente, contra o nosso melhor. E fazemos isso em nome de ideais alheios, que não nos falam ao coração, mas que insistimos em interpretar como sucesso.

Não há missão simples demais, assim como não podemos nos julgar incapazes de realizar nosso caminho. Esconder-se nesses argumentos prorroga as sensações de insatisfação e inadequação.

Entregar-se com coragem àquilo que a vida nos convida a ocupar é uma estratégia de conciliação com a realidade. Sermos quem poderemos ser, explorarmos nossas potências de forma respeitosa e colaborativa.

Compreendemos, assim, a dinâmica da engrenagem. Podemos atuar positivamente para fazer fluir, e não para embargar. O mundo precisa de nós, exatamente como somos e com aquilo que temos a oferecer. Descomplicar, como sempre, é a melhor saída.

Psique: Amar não deveria ser um problema. Mas esse afeto é tão complexo…

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Esta é a centésima edição de Psique. E, para comemorar, resolvi falar de amor. Dele derivam os grandes dilemas humanos e também partem as grandes soluções — aquilo capaz de transformar nossa realidade.

Amar não deveria ser um problema, mas esse é um afeto tão complexo, e tão subjetivo, que acabamos por confundi-lo com diversas outras coisas. E dessa confusão derivam os grandes sofrimentos humanos. Lido com eles diariamente em meu consultório.

Pessoas confundem amor com possessividade. Com a anulação em nome do outro. Com a indisposição para enfrentar uma nova realidade. Com o comodismo. Com a necessidade de reviver as marcas do passado. Com o medo de magoar. Entre outros incontáveis equívocos.

Tudo isso ocorre porque nem sempre conhecemos de fato o amor. Somente imaginamos, tomando por base a referência de sua antítese: o desamor. Chamamos de amor o contrário daquilo que queremos evitar: o abandono, a incompreensão, a insegurança, a incompletude.

Fazemos isso sem compreender que, de fato, tudo que tememos já está em nós, faz parte da nossa condição humana.

Tudo isso é atenuado de alguma forma, interpretamos como uma atitude amorosa. Nem sempre é. São incontáveis as razões que levam duas ou mais pessoas a se aproximarem. Vão da confluência de propósitos aos interesses mais escusos.

O amor real se define pelo compromisso desinteressado e generoso, o que é profundo e difícil de ser exercido. Nas palavras de Jung:

“O amor custa caro e nunca deveríamos tentar torná-lo barato. Nossas más qualidades, nosso egoísmo, nossa covardia, nossa esperteza mundana, nossa ambição, tudo isso quer persuadir-nos a não levar a sério o amor. Mas o amor só nos recompensará se o levarmos a sério”.

Quem consegue chegar a esse lugar, mesmo que por um instante e uma vez na vida, saberá diferenciar com mais tranquilidade a natureza das relações. Saberá que algo pode valer a pena, mas não necessariamente terá de chamar de amor. Ganha-se a lealdade consigo mesmo.

 

Da mesma forma, aprende-se que amor é para sempre. Ele se transforma, converte-se numa outra qualidade de amor – mas nunca deixará de sê-lo como é. Quando é verdadeiro, o amor é gregário, e não competitivo; é compreensivo, e não inseguro.

Amar é uma forma de contemplarmos o que há de mais profundo em nossa alma. Coisas que vão além das heranças familiares, ou daquilo que o mundo julga como importante. Quando amamos, acessamos o sagrado em nós.

Por esse motivo, envolvemos os seres que amamos com tanta importância. A eles, buscamos oferecer o melhor lugar para que se sentem. Acolhemos da melhor forma, para que ali permaneçam. Sabemos que, por meio deles, podemos experimentar, mesmo que por instantes, a impressão de sermos inteiros.

Psique: Evitar notícias ruins não nos leva a um mundo melhor

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Foi num grupo de Whatsapp que uma amiga pediu licença para desabafar. Estava estupefata com reportagens de prisão de um grupo envolvido com pedofilia. Narrativas falam da troca de imagens de bebês sendo abusados. Sensível e mãe de um garotinho, foi recomendada por outros integrantes do grupo a evitar tais notícias.

E esse acaba por ser a medida mais adotada quando nos deparamos diante daquilo que renega os valores básicos da humanidade. Olhar para o lado, fechar os olhos. Mas, no íntimo, algo nos chama a entreabrir os olhos e observar a situação, para algo além da curiosidade tétrica.

Quando lidamos com a existência desta e de outras formas de violência, igualmente abomináveis, entendemos por que o ser humano precisa de limites. Regimentos, leis, mandamentos e dogmas são instrumentos que criamos para que nos defendamos de nós mesmos.

“O que sai do coração do homem é o que o torna impuro”, como assinala o Cristo, leva-nos a pensar que também somos habitados por aquilo que nos assombra.

Nossa natureza compõe o belo e o feio, o bom e o mau, a luz e a treva. Identificamo-nos mais com o pólo positivo, o que é natural. Mas é justamente da negação do negativo que nos habita que emergem as atrocidades que compõem o noticiário.

A sensação de ressaca que vem quando se entra em contato com tais conteúdos deriva justamente disso. Nossa energia é drenada para os porões do inconsciente, do desconhecido em nós, despertando esse estado melancólico, desvitalizado. Quanto mais sensíveis e impressionáveis, mais afetados ficamos.

Assim, conhecer o lado mais sombrio da existência é imprescindível para que aprendamos estratégias de defesa. Nisso, não concordo com a recomendação de evitar tais conteúdo. Uma coisa é alimentar-se deles (o que é nocivo), outra é ignorá-los.

Não é à toa que o mal esteja associado a uma erva daninha. Ele nasce na fantasia e potencializa-se enquanto não é encarado como uma parte de nós. Ganha dimensões desproporcionais, inimagináveis. Tanta força que, quando tiver uma oportunidade, será convertido em experiência concreta: encontraremos o mal que tanto tememos.

Esta é a razão de explorarmos certas fantasias em análise: num ambiente seguro, o nosso lado perverso precisa ser identificado, reconhecido, nomeado, debatido. Assim, poderá ser compreendido e esvaziado.

Por esse motivo, somos tão curiosos às problemáticas humanas, seja no noticiário ou na ficção. A violência, a dor, a segregação… Quando observadas a certa distância, temos a chance de experimentar os afetos por elas despertados “em doses homeopáticas”, ou seja, capazes de atenuar do impacto original de uma vivência.

Enquanto denunciam o que há de pior em nós, também despertam o mais nobre dos sentimentos: a empatia. Acessamos as nossas referências de sofrimento para compreender como o dano atravessa o outro. E assim aprendemos a aceitar e lidar com as bestas que carregamos em nosso íntimo.

Psique: É fácil querer ser interessante. Difícil é se fazer interessante

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Queixar-se da solidão é algo curioso. O mundo, cheio como está, com uma infinitude de possibilidades de comunicação, ainda tem esse argumento como causa da infelicidade de tanta gente. Ironias à parte, talvez a falta de companhia encubra questões mais profundas.

O problema é: muitas pessoas carregam junto a esta lamentação uma série de adjetivos (quase sempre pejorativos) em relação ao outro. Reclamam tanto, e de tudo, que chegam a contradizer os próprios argumentos de desqualificação que utilizam para o descarte.

A conclusão: “ninguém é bom o suficiente”, “não compensa apostar”, “sei como é esse tipo de gente”. Uma série de respostas prontas, sempre bem na posição de defesa, para dizer que o problema não está em si. E quase sempre está. Ou estariam todos aquém do aceitável?

Muitas vezes, defender-se não é uma atitude soberba, como pode parecer. É justamente o contrário: apenas uma forma de minimizar o desconforto de sentir-se invisível. De não se perceber minimamente interessante para despertar a atenção do outro.

Uma pessoa se torna interessante por sua história. Por onde caminha, as escolhas que faz, o que viveu, em que empreende, o que realiza, o que perde, com quem se relaciona. Tudo isso propiciará um repertório de vivências.

Também conta a forma como se interpreta tais acontecimentos. Por exemplo: as marcas da dor fazem despontar numa pessoa a amargura e a melancolia; em outra, podem virar resiliência e determinação. A primeira será pouco desejável, enquanto a segunda pode ser altamente atrativa.

Não há como sermos interessantes sem estarmos disponíveis para viver. Da forma mais plural possível. Arriscar, experimentar, desacostumar, buscar a autenticidade. Tudo isso molda pessoas únicas, que despertam a curiosidade do outro.

É necessário valorar tanto o acerto quanto o erro. Em seus altos e baixos, a vida permitirá que aflorem em nós aquilo que somos: personalidade, características, temperamento. Cada blend que se forma é único, autêntico. E será interessante. Não a todos, mas a quem de fato interessa.

Muitos solitários, no entanto, buscam nas relações uma oportunidade para despertar tudo isso. Enxergam no outro uma espécie de paleta para colorir uma existência pálida, para preencher vazios. Um grande erro.

Não que uma relação não fará aflorar novos atributos, mas isso se dará de forma orgânica. Inclusive, Jung nos ensina que o relacionamento é a via régia do autoconhecimento, justo por fazer evidenciar o desconhecido que nos habita.

O lugar da princesa, adormecida à espera de um príncipe que a desperte, é uma boa imagem para falar dessas expectativas. Nessa história, a vida não se apresenta no sono dela, e, sim, no caminho dele. O cavaleiro se torna interessante ao assumir uma missão, ao enfrentar desafios com coragem, ao confiar no triunfo.

Ou seja: é a postura ativa, a forma como participamos de qualquer situação, que nos torna mais ou menos interessantes. Viver é diferente de existir, e quem entende isso consegue a atenção (e o respeito) do outro. Não há como atrair olhares se não tivermos o que mostrar.

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